O sucessor do procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza - cujo mandato termina no dia 28 - vai receber como herança o encargo de emitir os pareceres necessários para que possam ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ainda no segundo semestre deste ano, quatro questões polêmicas de grande repercussão nas áreas social e de direitos humanos: a descaracterização, como crime de aborto, da "interrupção da gravidez" de gestante portadora de feto anencéfalo; a extensão aos casais homossexuais ("uniões homoafetivas") do regime jurídico das uniões estáveis previsto no Código Civil; a exclusão dos efeitos da Lei da Anistia, de 1979, dos militares e policiais que teriam praticado crimes de tortura e correlatos durante a ditadura; e a constitucionalidade de dispositivos da chamada Lei Seca, que tipificou como crime a condução de veículos, estando o motorista com concentração ainda que mínima de álcool por litro de sangue.
Destas ações, a mais antiga é a arguição de descumprimento de preceito fundamental (Adpf 54), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), há exatamente cinco anos. Em agosto do ano passado, o ministro-relator da arguição, Marco Aurélio, promoveu uma audiência pública de três dias, com representantes de entidades científicas e religiosas diretamente interessadas na questão.
A CNTS e a Advocacia-Geral da União já apresentaram suas "alegações finais". A AGU pronunciou-se no sentido de que deve ser garantido à gestante "o direito subjetivo de se submeter à antecipação terapêutica do parto, sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou de permissão específica do Estado".
Para que o ministro-relator leve o caso a julgamento, no segundo semestre - depois do recesso de julho dos tribunais superiores - falta apenas que o chefe do Ministério Público Federal lhe encaminhe o necessário parecer, inclusive sobre uma questão levantada pela Frente Parlamentar em Defesa da Vida. Em dezembro do ano passado - com o apoio da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) - a frente integrada por 11 parlamentares encaminhou ao MPF uma representação contra a permanência de Marco Aurélio na relatoria da arguição, por ter ele antecipado publicamente, mais de uma vez, o teor de seu voto favorável à descriminação do aborto de feto sem massa encefálica.
Ao julgar a admissibilidade dessa Adpf, em abril de 2005, outros ministros do STF adiantaram, de uma forma ou de outra, seus pontos de vista favoráveis à pretensão da CNTS. Ayres Britto lembrou que se o Código Penal não considera homicídio o aborto "terapêutico", quando "não há outro meio de salvar a vida da gestante", não se poderia desprezar o "grave perigo de saúde da gestante, derivado do abalo moral e psíquico de dar à luz um produto da concepção que não é completo". Celso de Mello afirmou, na ocasião, que a penalização do aborto nos casos de fetos anencéfalos é "desproporcional e inconstitucional".
Uniões homoafetivas
Em março do ano passado, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, propôs a primeira ação destinada a provocar o STF quanto à constitucionalidade da aplicação do regime jurídico da união estável às chamadas uniões homoafetivas. No andamento do processo dessa Adpf (132), o ministro-relator, Ayres Britto, aceitou a participação no feito de várias entidades na qualidade de "amici curiae" (interessadas diretamente na questão) ¿ desde a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) até a Sociedade Brasileira de Direito Público.
Para Cabral ¿ que assinou a petição inicial, juntamente com a procuradora-geral do estado, Lúcia Lea Tavares ¿ "tendo havido, como houve, uma decisão estatal de dar reconhecimento jurídico às relações informais, a não-extensão desse regime às uniões homoafetivas traduz menor consideração a esses indivíduos". Vai ser a primeira vez em que o Supremo vai discutir a fundo o preceito constitucional (Artigo 226, parágrafo 3º) segundo o qual "Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".