O equacionamento adequado dos problemas do campo inscreve-se entre as tarefas mais complexas, com que se defronta a nova administração federal. A “era FHC” assistiu à exacerbação dos conflitos no meio rural, em boa medida desencadeados pelo movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - o MST - com suas estratégia e invasões, em escala crescente, de áreas tidas como improdutivas, para forçar sua desapropriação e o assentamento de famílias camponesas.
A mobilização dos rurícolas, sob as palavras de ordem - “invadir”, para “desapropriar” e “assentar” - inegavelmente funcionou como pressão eficaz, para levar as autoridades a se conscientizarem da dimensão atingida pela questão agrária, em termos sociais e econômicos, dando origem ao mais expressivo programa de reforma agrária da história, com cerca de 500 mil famílias assentadas, nos oito anos do Governo Fernando Henrique.
Se a luta dos movimentos sociais, do MST em particular, merece o crédito indicado acima, não devem ser omitidos alguns “custos” muito lamentáveis, como o fortalecimento da reação conservadora, acarretando um cortejo de violência, de que são exemplos emblemáticos os massacres de sem-terras no Pará - Corumbiara, agosto de 1995, Elaborado dos Carajás, abril de 1996.
O Governo Fernando Henrique reagiu ao agravamento dos conflitos com uma série de medidas, dentre as quais sobressaem: a criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (que, sob o comando do atual deputado peemedebista Raul Jungman, dirigiu a implementação da reforma agrária), apoio ao fortalecimento da agricultura familiar, com programa de crédito favorecido (Pronaf), e normas legais destinadas a conter o ímpeto invasor descontrolado do MST e de grupos dissidentes afins - gerador de novos confrontos com grandes proprietários de terras (em muitos casos, produtivas) e de indiscutível potencial desorganizador da produção rural, a qual tem papel decisivo, na atualidade, no contexto da economia voltada para a exportação.
A principal regra institucional com que se armou o Governo foi a Medida Provisória nº 2027, de maio de 2000, a qual veda a vistoria, por dois anos, de terras invadidas e exclui os invasores do rol de candidatos a assentamento. Essa lei teve indiscutível êxito, contrariando as expectativas e manifestações de lideranças do MST: o número de invasões entrou num processo decrescente - de 502, em 1999, caiu sucessivamente para 236, em 2000, 158, em 2001, e 89 em 2002.
A edição nº 11, de janeiro último, da revista Primeira Leitura, traz uma interessante trilogia de estudos sobre o MST e o futuro da reforma agrária no Brasil: “A difícil utopia do possível”, de Rui Nogueira, “Faíscas de civilização ou de Barbárie?”, de Xico Sá e “Sob o signo da foice e da cruz”, do ex-ministro Raul Jungman - formulando diferentes cenários para a evolução da questão agrária brasileira. Sublinhamos a contribuição desse último ensaio, que explica a origem e “ideologia” do MST, como fruto da crise na agricultura familiar nos Estados do Sul, nos anos 70/80 (atropelada pelo avanço da produção capitalista no campo) e de sua organização pelas mãos de grupos religiosos, tributários de valores rurais e inspirados por um certo “marxismo”, da chamada “Teologia da Libertação”, que prosperou em setores do catolicismo latino-americano na mesma época. Assim, o MST não teria como meta somente a realização da reforma agrária, mas, agindo como quase-partido - “braço político de uma fração da Igreja e dos camponeses”, e com o projeto de poder “socialista” - tenderia a distanciar-se dos objetivos anunciados pelo Governo Lula, em busca da redução das desigualdades sociais, mas sem sacrificar a estabilidade econômica e os valores da democracia e do Estado de Direito. O judicioso estudo do ex-ministro Jungman faz interessante cotejo de dados de pesquisa sobre a origem de padres e freiras do Brasil, nas últimas décadas - a maioria provindo da zona rural sulista (cf. Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais - Ceris, Rio de Janeiro, 1998) - com a procedência social, e até geográfica, dos principais dirigentes do Movimento (os Stédile, Manto, Brunetto, Amorim e mesmo José Rainha), assim como de lideranças episcopais da Igreja Católica, como os Chemelo, Lorscheider, Bernardino, Damasceno.
Essas coincidências lançam luz sobre algumas visões e postura radicais do MST: um certo “maniqueísmo”, transporto do domínio religioso para as concepções e ação políticas, engendrando um elenco de “demônios”, tais como - o latifúndio, a globalização, os produtos transgênicos e os “neoliberalismos”, corporificado no Governo FHC, satanizado e combatido sem trégua pelo Movimento, como enfatiza a análise do deputado Jungman.
Qual será a tônica do comportamento do MST, no novo contexto governamental, liderado pelo aliado Partido dos Trabalhadores? Como registrou a imprensa, vários dirigentes regionais do Incra, neste Governo, foram indicados pelo próprio MST, ou pela Confederação dos Trabalhadores na Agricultura - Contag, ou ainda pela Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica, que geralmente apóiam as ações do Movimento. O próprio Ministro do Desenvolvimento Agrário seria muito ligado ao MST, segundo comentários da mídia. Enquanto o presidente do Incra, em declarações à imprensa, revela-se contemporizador e tolerante, diante das primeiras ações ilegais e violentas do Movimento, no novo período administrativo, com invasões de sede do órgão e de fazendas, em vários Estados. Os defensores da democracia e da ordem jurídica acompanham com apreensão o desenrolar dos acontecimentos, para saber se o MST se enquadrará nos propósitos que vêm sendo proclamados por expoentes do Governo petista, de fazer da reforma agrária um “instrumento de desenvolvimento econômico e social”, transformando os projetos de assentamento em propriedades efetivamente produtivas. Ou se, ao contrário, retomará sua antiga estratégia de escalada de invasões de terras (mesmo racionalmente exploradas) e de órgãos públicos, como aliás, vem ocorrendo, inclusive em Pernambuco, aparentemente com intenções que não se limitam à bandeira da reforma agrária, mas se inspirariam em objetivos mais “revolucionários”, e não necessariamente democráticos.
Esta não é uma questão menor, nem para o Governo, nem para o País!
(*) Dorany Sampaio é advogado, ex-presidente da OAB/PE.
|