Todos os leitores sabem, mas é conveniente lembrar que o verbo comemorar não sugere necessariamente alegria e nem esfuziantes espasmos de felicidade. Comemorar significa trazer à memória, apenas isso. Foi comentada aqui, ontem, a pesquisa da FGV (Fundação Getúlio Vargas), que dá conta de que o Brasil tem 50 milhões de sobreviventes pendurados no trapézio da pobreza. E salvo acidente estatístico, está difícil que eles consigam dar um salto para cima e alcançar plataforma segura e estável, aquela próxima da cobertura da lona e cujo nome só os afeitos às artes circenses conhecem.
Qualquer vacilação, e lá vão eles despencando do trapézio da pobreza para o chão da miséria. E como se sabe, a pobreza é o estágio superior à miséria: na pobreza se tem o mínimo vital, na miséria nem isso. Pois bem, está sendo comemorada a reedição do clássico “Geografia da Fome”, de Josué de Castro, livro que durante muito tempo fez o coração e a cabeça de gerações de brasileiros. Simplificações e exageros à parte, o livro de Josué de Castro abriu novas perspectivas para o correto entendimento das causas da fome em todo o mundo.
A base teórica do pensamento de Josué de Castro era que a fome, como regra geral, era produto de defeitos da estrutura econômica. A tese não era tão original, pois na época do lançamento da “Geografia da Fome” (1946), alguns estudos já existiam com esta mesma orientação. O novo na abordagem de Josué de Castro foi a agregação de enfoques multidisciplinares para o estudo da fome. Assim, valeu-se de outras ciências - endocrinologia, nutrição, fisiologia, climatologia, etc. - e com elas deu à sua tese uma dimensão mais abrangente e universal. A reedição de sua obra traz consigo certa tristeza e desânimo; afinal, muito do que escreveu em 1946 sobre a tragédia da fome no Brasil continua vigente, conforme atesta a pesquisa da FGV recém-divulgada. Mudaram, apenas, os números estatísticos.
A Universidade de Campinas também realizou um levantamento sobre a fome no Brasil e vai apresentar uma proposta de política pública para esta questão crucial. Preliminarmente, já se sabe que para este levantamento, o projeto usou como parâmetro na definição de quem estaria abaixo da linha de pobreza, o cálculo de uma renda de U$ 1 per capita por dia. O resultado é melancólico: foi estimado em cerca de 44 milhões (ou mais de 9 milhões de famílias) o número de brasileiros famélicos. O que mudou desde obra pioneira de Josué de Castro foi a geografia da fome: antes, no campo, hoje, nas grandes cidades. O trágico paradoxo é que, durante estes anos, a relação entre a produção de alimentos e o aumento da população, indica que aquela foi superior a esta. O que estaria errado: os homens ou os sistemas?
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