ENTREVISTA/Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
No discurso que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez na última quinta-feira, no Palácio do Planalto, gabou-se por saber de cor o nome de todos os ministros. Citou um a um, durante a cerimônia de apresentação do relatório de consulta pública do Plano Plurianual de Investimentos para 2004/2007, em Brasília. Por impedimento visual, esqueceu-se de dois, um a sua esquerda, o outro a sua direita. Lula aproveitou a deixa para lembrar por que tornou-se presidente do Brasil. Disse, em tom de brincadeira: “não me dirijo à esquerda, nem à direita. O meu negócio é o centro”.
A habilidade em negociar com os mais diversos setores da sociedade rendeu a Lula, ao longo de sua história política, as oportunidades necessárias para atingir seus objetivos. A mais recente foi a aprovação da reforma da Previdência em primeiro turno, na Câmara dos Deputados. Nesta entrevista, a primeira que concede como presidente da República a uma emissora de rádio no país, a Rádio Nacional, ele classifica de “extraordinária” a aprovação da reforma.
“Qual é o milagre? É o exercício da democracia na sua plenitude. Conversar com os segmentos da sociedade, com quem é situação e quem é oposição. Ter a capacidade de ouvir os prós e os contras”, afirma.
Acelerar as reformas tem custado ao presidente, não raro, 12 horas de trabalho por dia. Rotina cansativa, mas longe de ser uma novidade para quem trabalha desde cedo. Aos sete anos de idade, Lula começou vendendo amendoim e tapioca em Santos. Não parou nunca mais. “Eu não cheguei à Presidência da República por acaso. Não fui uma figura inventada. Eu briguei para ser presidente, perdi três eleições e não desisti”, garante.
Radiobrás - O governo iniciou com uma tarefa árdua, a aprovação das reformas da Previdência e tributária. Por que começar com o mais difícil?
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva - É muito importante que o povo brasileiro saiba que, durante a campanha, nós prometemos que, no primeiro semestre de 2003, iríamos discutir com a sociedade a proposta de reforma da Previdência e tributária e que, no segundo semestre, iríamos enviá-la ao Congresso Nacional. Em função da necessidade de fazer as duas reformas com uma certa urgência, por conta da falência do sistema previdenciário do país, especialmente no setor público, da fragilidade dos Estados na arrecadação e da política tributária que asfixia o setor empresarial, responsável pelo investimento na produção, nós resolvemos antecipar.
Fizemos uma proposta de reforma discutindo com os 27 governadores. Foi uma inovação na política nacional: pela primeira vez os governadores participaram da elaboração da proposta. O segundo passo foi levar a discussão da proposta ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que é uma representação da sociedade brasileira, com sindicalistas, empresários, banqueiros, sem-terra, intelectuais, organizações não governamentais, Igreja Católica, igrejas evangélicas. Quando estava pronto o projeto, com a concordância dos governadores, do conselho e do governo, nós, junto com os governadores, o enviamos ao Congresso, no dia 30 de abril, dois meses antes do que eu tinha prometido na campanha.
E, para minha grata surpresa e alegria do povo brasileiro, conseguimos fazer em sete meses uma reforma que, em alguns países do mundo, demorou cinco, oito e até dez anos. Aqui no Brasil, o presidente que eu estou sucedendo ficou oito anos tentando fazer e não conseguiu. E qual é o milagre? É o exercício da democracia na sua plenitude. Conversar com os segmentos da sociedade, com quem gosta do governo e com quem não gosta, com quem é situação e com quem é oposição, com quem não está organizado em partido político, ter a capacidade de ouvir os prós e os contras. Foi assim que conseguimos votar a reforma da Previdência, que eu acredito ser um bem enorme para o governo federal e muito mais para os estados, que estão falidos. Agora, eu posso olhar no rosto do meu neto e dizer que ele, daqui a 30 ou 40 anos, terá um sistema que lhe garantirá uma aposentadoria segura e terá assegurado que o Estado terá dinheiro para lhe pagar.
Foi um benefício enorme para o povo brasileiro. Obviamente que algumas pessoas sempre são contra - é normal. Mas, a verdade é que é a primeira vez na história do Brasil que, sem fazer discurso, nós acabamos com os marajás da vida política brasileira. Todo mundo lembra que, em 89, o Collor falou que ia acabar com os marajás, mas em 2003 ainda tinha gente ganhando R$ 53 mil, R$ 45 mil, R$ 30 mil por mês. A partir de agora, o maior salário será igual ao do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), R$ 17 mil.
Radiobrás - Presidente, o senhor sofreu muita resistência para fazer essa reforma. O senhor acredita que a população já está se dando conta dos benefícios dessa reforma ou é algo que será sentido a médio e longo prazo?
Presidente Lula - A resistência não foi da população, porque todas as pesquisas mostraram que 70% dos brasileiros são favoráveis à reforma da Previdência. Mesmo no setor do funcionalismo público, nós tínhamos uma maioria favorável, sobretudo a grande maioria que ganha os salários mais baixos. Por quê? Porque na reforma nós tratamos de proteger as pessoas que ganham menos. Quem ganha até R$ 1,2 mil por mês, se já estiver aposentado, não vai contribuir com os 11%. Quem ganha mais vai contribuir somente sobre o que excede R$ 1,2 mil. Unificamos o teto, com o regime geral. Todo mundo vai receber R$ 2,4 mil por mês - esse é o teto. Resolvemos o problema da pensão. A reforma significa a certeza de que nossos filhos e netos terão direitos verdadeiramente adquiridos.
Radiobrás - Então, a reforma da Previdência foi um sucesso?
Presidente Lula - A reforma da Previdência aprovada até agora foi um sucesso extraordinário. Alguns especialistas acham que o que foi aprovado é até melhor do que o que nós mandamos para o Congresso Nacional. E, passada essa situação, mais uns 15 dias, vamos ver a reforma tributária ser votada. Quero ver se votamos até dezembro, o mais tardar. Precisamos começar o ano de 2004 pensando em outras coisas. Temos que dedicar muito tempo à reforma agrária. Temos que fazer a reforma da legislação trabalhista, a reforma da estrutura sindical brasileira. E temos que começar a discutir a retomada do crescimento da economia, porque é isso que interessa. O Brasil tem que voltar a crescer para gerar empregos, gerar renda e gerar distribuição de riqueza.
Radiobrás - Quais serão os próximos passos do governo?
Presidente Lula - Vamos ver primeiro o que já foi feito. Quando nós tomamos posse, todo brasileiro sabia que a economia estava numa situação difícil e que era preciso recuperar a credibilidade externa. Vamos só lembrar uma coisa: em dezembro do ano passado, a perspectiva de inflação para os próximos 12 meses era de 40%. Hoje a perspectiva é de 7%. Em dezembro do ano passado, o Brasil não tinha um dólar para financiamento das nossas exportações. Hoje, temos financiamento outra vez. Nós começamos a reduzir a taxa de juros e depois que reconquistamos a credibilidade do Brasil tanto interna como externamente, resolvemos atacar alguns setores que entendíamos necessários.
Fizemos a mais importante política agrícola para este país. Liberamos, pela primeira vez, R$ 5,4 bilhões para a agricultura familiar. Liberamos dinheiro antes da época do plantio e, mais importante, agora não só o dono da terra, o homem, vai ter o financiamento. A sua mulher pode ter, o filho pode ter. Então, em uma mesma propriedade, a família pode fazer três projetos e pegar dinheiro, com uma vantagem: o Banco do Brasil efetivamente se desburocratizou, as pessoas agora vão ao banco e vão pegar o seu dinheiro.
E na agricultura empresarial, que está indo muito bem no Brasil, vamos fazer tudo o que for possível para aumentar a nossa produção, as nossas exportações e tenha mais superávit comercial. Depois, discutimos outras coisas importantes para o Brasil: a questão do microcrédito. O problema é com o povo pobre deste país, que quer comprar um eletrodoméstico qualquer. Se for a uma financeira, vai pagar mais de 300% de juros ao ano. Se for a um banco, vai pagar 116% ao ano. Nós então criamos, na Caixa Econômica Federal e no Banco do Brasil, políticas de microcrédito, para que a pessoa possa pegar dinheiro a 2% ao mês. É um ganho extraordinário para essas pessoas que jamais conseguiram ter acesso ao crédito.
E nós vamos criar mais, vamos fazer cada coisa que nós prometemos durante a campanha. A única coisa que eu peço é compreensão. Não dá para fazer tudo de uma vez: não dá na família da gente, não dá na cidade da gente e, muito menos, no Brasil, porque é muito problema. Mas pode ficar certo, meu amigo e minha amiga, que tem uma coisa que eu aprendi e não vou perder: é o direito de andar de cabeça erguida no meu país olhando na cara da minha gente e podendo conversar de irmão para irmão. Isso eu aprendi com a minha mãe, uma analfabeta, e isso eu quero passar para o meu povo. Você pode ter dificuldade de fazer as coisas, mas, se tiver disposição, vontade, você faz. Porque não briguei para ser eleito e não fazer. Eu vou fazer cada coisa que assumi de compromisso com vocês.
Radiobrás - O povo brasileiro se orgulha por ver uma figura como o senhor, uma pessoa vinda das camadas mais populares, sobretudo do Nordeste, chegando à Presidência. O que mudou na sua vida depois do dia primeiro de janeiro?
Presidente Lula - Aumentou a minha responsabilidade. Eu tenho trabalhado mais do que quando trabalhava na Villares e fazia duas horas extras todo dia para ajudar nas despesas de casa.
Radiobrás - Como é o dia do presidente da República? O senhor mudou para Brasília, sua família veio? Já se acostumou com a cidade? O senhor tem tempo de fazer exercícios, natação? Como está seu dia-a-dia?
Presidente Lula - Primeiro, eu não vejo Brasília. O que eu vejo é o caminho do Alvorada para o Palácio do Planalto. Demora 8 minutos de carro. Eu levanto todo santo dia, de domingo a domingo, às 6 horas da manhã. Ando todo dia uma hora eu e a minha mulher (Marisa Letícia). Quando Palocci (o ministro da Fazenda, Antonio Palocci) pode, ele vem aqui para andar um pouco comigo. Depois, faço mais um pouco de exercício. Quando são 9 horas, o Gilberto Carvalho (chefe do gabinete pessoal da Presidência e amigo pessoal de Lula) já agendou alguma tarefa para mim. Chego ao Palácio do Planalto às 9 horas da manhã. Tem dia que tenho audiência até as 9 horas da noite, aí eu volto para casa já um bagaço para dormir, acordar no dia seguinte e levantar. Não consigo ver Brasília, só esse trajeto. Mas eu estou fazendo isso como uma profissão de fé.
Radiobrás - Nós já vimos um ex-presidente afirmar que é fácil governar o Brasil. Governar o Brasil é fácil?
Presidente Lula - Não é difícil não. Tem muitos problemas, mas, se tudo estivesse resolvido, eu não teria ganho. Ganhei exatamente porque tem muito problema. As pessoas creditaram ao meu partido, aos meus aliados e a mim a responsabilidade de resolver esses problemas. Eu não cheguei à Presidência da República por acaso. Não fui uma figura inventada, “ah, vamos escolher fulano para ser presidente”. Não, eu briguei para ser presidente da República, perdi três eleições e não desisti. Eu queria provar que é possível melhorar a vida desse povo, é possível garantir que as pessoas tomem café da manhã, almocem e jantem todo o dia. É possível garantir que as pessoas tenham a possibilidade de ter uma casinha para morar.
É possível fazer uma reforma agrária tranqüila e pacífica neste País. Ninguém vai fazer ela na marra. Quem vai fazer é o governo. E vai fazer de acordo com as suas possibilidades. A reforma agrária é muito importante para nós, mas ela não pode ser feita como era até então, jogando os trabalhadores pobres no meio do mato e deixando por conta de Deus. É preciso dar terra, infra-estrutura, ter estrada para escoar a produção, ter financiamento, formar agroindústria, agrovila. Não um morador a dez quilômetros do outro. Constrói uma agrovila, ali você coloca uma escola, um posto médico, faz uma praça para as crianças brincarem. Você transforma essa reforma agrária numa coisa civilizada, humana.
Temos que pensar em um outro jeito de fazer as coisas neste País. E vamos fazer, porque eu acredito nisso, o governo é todo de gente comprometida com isso. Sabemos que temos que fazer: é isso que dá tranqüilidade, dá otimismo. Para mim, não tem tempo feio. Nunca conquistei nada na vida que fosse fácil. Vamos resolver o problema do Brasil na luta, com perseverança, mas também com paciência, sempre dizendo a verdade para o povo brasileiro. Na hora em que a gente puder dar, a gente dá. Na hora em que a gente não puder, tem que fazer como faz com o filho da gente: “não posso”. E as pessoas têm que compreender. Quero que o povo brasileiro saiba que, cada vez que fizermos um gesto de honestidade com o povo, é o gesto de honestidade que tenho com meus filhos e netos.
|