Mudei meu destino de cigana

 

Mulher - 16/02/2003 - 10:27:55

 

Mudei meu destino de cigana

 

Da Redação com agências

Foto(s): Divulgação / Arquivo

 

A empresária paulista Parashtiva Barthalí, 39 anos, é uma cigana que sempre gostou de estudar. Mas a tradição de seu povo limita a cultura das meninas à fase de alfabetização. Desde pequenas, elas são educadas para ler a sorte e se casar. Parashtiva desafiou os costumes: chegou à universidade e ainda fugiu de casa para se casar com um homem que não é cigano. Longe da comunidade, sentiu saudade. Hoje, em paz com suas raízes, ela conta sua viagem de volta às origens "Sou cigana e desde pequena tive de lutar pelo meu lugar na sociedade e na minha comunidade. Como boa escorpiana, sempre tive força de vontade e sede de conhecimento. Mas as meninas ciganas não podem estudar muito. Pela nossa cultura, basta que sejam alfabetizadas. O destino de uma cigana é se casar com um cigano, cuidar da família e ler a sorte. Eu fui um pouco rebelde: cheguei a cursar dois anos de faculdade e me casei com um gajo -como a gente chama o homem que não é cigano. Nasci em São Paulo, em uma família do grupo Kalderachi, um dos maiores do Brasil, que tem origens russas, libanesas, italianas e espanholas. Os Kalderachi se diferenciam dos outros ciganos pelo costume de beber 'tchaio' -mistura de chá preto e frutas, que simboliza boa sorte. Também é o grupo que veste as roupas mais tradicionais. As mulheres usam saias longas, lenços na cabeça e muitos acessórios dourados. Meu sangue cigano é puro e vem de longe. Minha mãe nasceu na Espanha, filha de um grego e de uma mexicana -minha querida avó 'mamita', que tinha o dom de curar as pessoas com ervas e toques. Durante a Guerra Civil Espanhola, meus avós fugiram e se perderam um do outro na confusão. Foi triste. Eles passaram muito tempo viajando, tentando se reencontrar, mas isso só aconteceu 30 anos depois, no Brasil, quando meu avô já tinha se casado de novo. Meu pai é filho de um libanês e de uma russa. Minha avó paterna se chamava Parashtiva, como eu, um nome que simboliza sorte. Ela lia cartas e a borra do café. Eles viveram na Polônia e na Espanha, onde meu pai conheceu minha mãe. Depois as famílias vieram para o Brasil e meus pais se casaram aqui. Sou a filha do meio, entre uma irmã mais velha, Lucrécia, e um irmão, que é o braço direito do pai. Meu pai tem uma fábrica de peças para tratores, barcos, e sempre viajou muito, restaurando máquinas em usinas e estaleiros. Os ciganos não gostam de ser empregados, para manter a liberdade. Mas têm sempre um pé fincado em um pedaço de terra, que fica sendo sua referência. O nosso pé estava fincado no bairro da Lapa, em São Paulo, onde tínhamos uma casa. Antigamente os ciganos viviam em tendas, mas, com o aumento da violência, passaram a morar em casas e apartamentos, como os gaje -pronuncia-se 'gajê' e significa pessoas que não são ciganas, em romani, o dialeto dos ciganos. Quando viajam, ficam em hotéis. Esses ciganos que vivem lendo a sorte nas praças, em geral, são os mais pobres. Minha infância foi cheia de viagens. Por causa do trabalho do meu pai cada dia estávamos em um lugar. Íamos de carro e ficávamos de um mês a um ano. Quando eu tinha 5 anos, ele foi recuperar uns tratores em Porto Alegre. Chegando lá, procuramos uma família de ciganos. A comunidade é unida, quando um viaja todos ficam sabendo e oferecem jantar e pouso em suas casas. Essa família nos recebeu com uma mesa bonita, com comidas típicas e tchaio. As filhas do casal cantaram e dançaram. Na hora de dormir, montaram uma tenda para a gente no quintal, embaixo das árvores. Adorei a aventura. Depois moramos um ano em Belém. Lá, cursei a 1ª série em casa, com professora particular, aos 7 anos. Meu pai não me pôs na escola, temendo que eu perdesse nossos costumes. Os ciganos receiam que, ao conviver com os gaje, as meninas se encantem com o mundo deles. Por isso, elas geralmente não passam do primário. Já os meninos podem estudar mais, para seguir o ofício do pai. As mulheres são educadas para se casar e desenvolver seus dons espirituais. Meu avô grego me ensinou a ler a borra do café; minha mãe me ensinou a ler a mão. Como eu era inquieta, um dia ela disse: 'Vem cá, para eu ver na sua mão por que você é tão agitada'. E foi me dizendo o que cada linha significava. Também desenvolvemos a mediunidade. Isso nasce com a gente e é tão normal quanto escovar os dentes. Uma vez, eu disse a minha mãe que estava vendo um velhinho com barba e mão grande. Pela descrição, era um parente falecido. Eu também tinha visões, depois as coisas aconteciam e eu via que eram avisos. Eu sempre visitava minha avó 'mamita', que morava em Campinas, e via a casa dela cheia de gente. Pessoas ricas, pobres, vinham de todas as partes em busca de cura para alguma doença. Fui me interessando em ajudar as pessoas, mas me sentia insegura, porque achava que era muita responsabilidade ter o dom da vidência. Contava minhas visões para a minha mãe, ela dizia que isso fazia parte da nossa missão. Era complicado, porque eu queria respostas, mas era apenas uma menina. E, no meio disso tudo, tinha vontade de estudar e ver o mundo fora da nossa comunidade. Aos 8 anos, minha vida começou a mudar. Meu irmão entrou na escola e dei a desculpa de cuidar dele para continuar os estudos. Como ele era mais novo, tive de voltar para a 1a série, mas era o jeito. Foi quando comecei a sentir a diferença entre o mundo dos ciganos e dos gaje. Embora eu me vestisse como as outras crianças, todos sabiam que eu era cigana, por causa da minha mãe, que usa saias longas e lenço na cabeça. Essa época foi difícil, as crianças eram preconceituosas. Eu queria fazer amigos, mas ouvia falar que determinada mãe havia proibido a filha de andar comigo porque muita gente acha que cigano é ladrão e feiticeiro. Era comum eu ficar fora dos trabalhos em grupo. Eu percebia como era difícil fazer um elo entre os dois mundos. Aos 9 anos, sonhei que uma menina da classe havia sido atropelada. Querendo ajudar, disse a ela para tomar cuidado. A mãe dela foi à escola, fez uma gritaria, me chamou de bruxa. Não aconteceu nada com a menina, mas o mundo caiu na minha cabeça e eu pensava: 'Queria ajudar e acabei causando sofrimento'. Outra vez, trouxe um amiguinho em casa para fazer um trabalho de escola e foi um escândalo! Meu pai me pediu para mandar o menino embora, pois eu era uma moça e não podia trazer homens em casa. Essas coisas me angustiavam, mas eu tirava de letra. Tinha as melhores notas -principalmente em português-, participava de grupos de teatro e recitava poesias. Só que, na metade da 4a série, meu pai resolveu ir para Manaus. Foi terrível, eu adorava a escola e já sonhava em ter uma profissão. Mas a curiosidade me acompanhava: em Manaus, fiquei amiga de uns índios que faziam artesanato na praça da cidade. Aprendi um pouco sobre as plantas da região e mandava ervas para a minha avó 'mamita' fazer suas curas. De volta a São Paulo, retomei os estudos. Mas, quando terminei a 5ª série, meu pai disse: 'Saber ler e escrever é mais do que suficiente para uma mulher'. Fiquei um ano em casa. Eu e minha irmã passávamos o dia lendo tarô, aprendendo com os mais velhos técnicas de cura, pois era o que iríamos fazer, além de cuidar do marido. Quanto mais conhecimentos espirituais a mulher possui, mais respeitado é seu marido na comunidade. Eu sentia saudades da escola, mas também gostava das atividades espirituais e das festas ciganas, sempre alegres. Uma das mais tradicionais se chama Prasnicos e é feita em agradecimento por uma bênção recebida de algum santo. Rezamos para os santos católicos, mas temos nossas sacerdotisas e a santa Sara Kalí, que corresponde a Nossa Senhora Aparecida. A festa dos Prasnicos acontece no dia do santo que atendeu o pedido. Dura o dia inteiro, e a mesa não pode ficar sem comida em nenhum momento. Tem muita música e há sempre uma moça virgem que dança para os pretendentes. Eu já era mocinha, mas, por viver nesse conflito entre os estudos e a vida cigana, não me interessava por garotos. Na adolescência, fui rebelde porque trazia amigas que não eram ciganas em casa. Também descobri um novo talento: pintar. Passava horas misturando tintas e fazendo telas com motivos espirituais. Aos 14 anos, resolvi fazer um curso de artes plásticas, escondida do meu pai. Eu teria das 8h às 19h para estudar -horário em que ele trabalhava. Mesmo assim precisaria contar com o apoio de minha mãe, e consegui, após longa insistência. Ela se preocupava com meus questionamentos e me pedia para tomar cuidado com os gaje. Eu recebia uma boa mesada, suficiente para comprar roupas de marca. Usava roupas normais, mas em vez de comprar peças de marca, como minha irmã, economizava para pagar a mensalidade do curso e o material. Era comum eu ficar um ou dois meses sem ir ao curso porque o dinheiro acabava. Por sorte, os professores eram sensíveis à minha situação. Foi uma fase boa, minhas amigas adoravam que eu lesse suas mãos. Já pensando em ter uma vida independente, comecei a vender meus quadros em feiras místicas. Meu pai sabia que eu pintava e não se importava. Terminei o curso decidida a concluir o ginásio e cursar uma faculdade. Minha mãe nem suspeitou que voltei a estudar porque seguia os horários de sempre. Paralelamente, eu via minha mãe abrindo a casa para ler a sorte. Isso me deixava insegura. Eu pensava que aquele era meu destino, mas não tinha o talento dela. Consegui terminar o segundo grau sem meus pais saberem. Minha irmã, que parou de estudar na 4ª série e trabalhava com meu pai, ajudava a encobrir meus segredos. Aos 22 anos, fiz vestibular e passei em jornalismo e artes plásticas. Mas um amigo da família, procurando o nome do filho na lista de aprovados, viu meu nome e contou para o meu pai. A casa caiu. Uma cigana estudando à noite era um absurdo para a comunidade. Nunca tive um bate-boca com meu pai, porque sempre o respeitei. Mas, nos dois anos em que freqüentei as aulas, ele chegou a dizer que eu não era sua filha. Nessa época, nossa casa foi assaltada. Assustado com a violência e para me afastar dos estudos, meu pai levou a gente para Porto Alegre por três meses. Lá, para não ficar sem fazer nada, aprendi com minha mãe a preparar pratos ciganos, como o 'sarni', um charuto de folhas de repolho e carne. Quando retornamos a São Paulo, não voltei à faculdade, para acabar com os conflitos. Em compensação, o maior medo dos meus pais acabou se tornando realidade: me apaixonei por um gajo. Eu tinha 25 anos e nunca havia namorado. Na tradição cigana, não existe namoro. As pessoas se casam direto, depois de um acerto entre as famílias. Nesse aspecto, eu seguia os costumes: não namorava e permanecia virgem. Quando conheci Paulinho, irmão de uma amiga da Lapa, fiquei atraída pela liberdade que ele representava. Ele tinha 24 anos, era funcionário público e morava em Maceió. Nos vimos em uma de suas visitas à família. Paulinho se encantou com o fato de eu ser cigana, achou bonito. Namoramos dois meses e começamos a planejar que eu fugiria para casar. A família dele nos apoiou, porque a idéia de o filho se casar representava ele ter uma vida mais séria. O pai pagou nossas passagens de avião para Maceió. Nos casamos em São Paulo, só no cartório, com um casal de amigos como padrinhos. Foi meio triste para mim. Se eu casasse na comunidade, haveria uma grande festa. Quando os noivos chegam, uma bandeira vermelha com o nome do casal é hasteada, como símbolo de boa sorte. Às 18h, eles seguem para a noite de núpcias. No meu caso, o casamento foi de manhã e à tarde embarcamos para Maceió. Do aeroporto, liguei para casa. Meu irmão atendeu e eu disse: 'Não se preocupe, estou me casando'. Ele ficou mudo. De Maceió, eu ligava todos os dias, para dizer que estava bem, mas só minha irmã falava comigo. Nos primeiros meses, eu e Paulinho vivemos felizes, embora eu me sentisse sozinha. Estava acostumada com a casa cheia de gente. Não lia a sorte porque não me sentia capaz, era como se tivesse traído meu povo. Com quatro meses de casada, engravidei. Eu era muito ingênua em relação a sexo -assunto tabu para as meninas ciganas- e não soube evitar. Quando meu filho nasceu, minha irmã vendeu o carro dela para me visitar. Ela, sim, se casou com um cigano e sempre seguiu as tradições. Já os meus pais continuavam sem falar comigo. Comecei a sentir muita falta do meu povo, da minha língua, das festas. Um dia, não agüentei, peguei o bebê e fui visitar meus pais, que a essa altura tinham se mudado para Campinas. Mas não houve diálogo. Passei o dia no sofá, com meu filho no colo, e só minha irmã e meu tio Pepe, irmão de minha mãe, falaram comigo. Ainda passei uns dias com meus sogros, em São Paulo, e voltei triste para Maceió. Quatro meses depois, tentei nova reaproximação. Cheguei disposta a ficar uma semana e eles começaram a falar comigo, de uma maneira formal. Um dia, meu pai falou: 'Você me traiu!'. Depois chorou bastante. Minha mãe, mais durona, disse: 'Tudo bem, vamos almoçar'. Só na hora de ir embora ela me abraçou e voltou a ser carinhosa. Alguns meses depois, ela sofreu uma parada cardíaca e ficou na UTI. Paulinho pediu uma licença do trabalho e resolvemos tentar a vida em Campinas. Minha mãe melhorou. Me enfiei na casa dos meus pais, com meu marido e meu filho, para ficar perto dela. Nossa reaproximação foi gradual, não houve uma conversa formal. Mas meu pai acabou chamando o Paulinho para trabalhar com ele. Dois anos depois da minha fuga, eles finalmente me perdoaram e aceitaram o Paulinho. Com o dinheiro que ele ganhava, alugamos uma casa em Campinas e vivemos uma fase feliz. Voltei a ler a sorte e fazer trabalhos espirituais para ajudar as pessoas. Também trabalhei um tempo vendendo cobertores em feiras de malha. Em 1994, alugamos uma mansão em São Paulo e montamos um bufê cigano. Passei a promover eventos e tenho um espaço holístico onde dou consultas. Não demorou para a harmonia reinar e engravidei de novo. Tive mais um menino e, cinco anos depois, uma menina. Paulinho, que durante essa fase trabalhou comigo, também incorporou costumes ciganos, como beber tchaio e fazer orações. O problema é que recebo em casa todos os tipos de pessoas, a qualquer hora, e isso foi criando conflitos com o Paulinho. Eu tinha uma salinha de atendimento, mas a sala de estar era a de espera. Ele chegava do trabalho e estranhava a casa cheia de gente. Depois de 11 anos, nos separamos. Ficou apenas a amizade. Hoje moro com meus três filhos, de 12, 10 e 5 anos, em um apartamento, em São Paulo. Paulinho nos visita sempre e até nisso sou diferente porque, quando os ciganos se separam, os filhos ficam com o pai. Não pretendo me casar novamente. Cada um tem seu caminho, o meu é ajudar as pessoas com meus dons espirituais. Sou uma mulher feliz, cheia de atividades e continuo viajando, fazendo eventos ciganos. No dia-a-dia, ando 'à paisana', mas faço questão de usar os trajes típicos quando estou no meio do meu povo -somos cerca de 400 ciganos Kalderachi, em São Paulo. Eu sinto que a comunidade ainda me olha diferente porque sou independente. Ao mesmo tempo, dizem que admiram meu trabalho e minha luta para criar meus filhos. Eu reciclei algumas tradições e procuro passar para meus filhos o que há de bom na cultura dos ciganos e dos gaje. Com os ciganos, quero que eles aprendam o valor da liberdade, da solidariedade, da espiritualidade. Eu os ensinei a cultuar os santos e orar para atrair sorte. Os meninos tocam vários instrumentos, são artistas. Mas quero que todos estudem. A menina tira ótimas notas na escola, já sabe ler a mão e fala romani. Se um dia ela se apaixonar por um gajo, não vou me opor. Só quero que meus filhos sejam felizes e cultivem as raízes ciganas com alegria. Não somos ladrões ou feiticeiros. Somos um povo nômade por natureza, que ama a liberdade e conhece os mistérios da magia." Depoimento a Priscila de Paula Gorzoni

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