A Bolívia acaba de sair de uma rebelião popular que lhe custou dezenas de mortos e feridos e paralisou o país. Sair é uma maneira de dizer. Oxalá tenha saído. O presidente constitucionalmente eleito Gonzalo Sánchez de Lozada renunciou, por pressão da maioria indígena da população e dos partidos mais à esquerda do espectro político. Constitucionalmente, o vice-presidente Carlos Mesa tomou posse e está tentando montar um Governo apartidário. Os partidos políticos latino-americanos são, geralmente, tão pouco confiáveis e fisiológicos que a bandeira do apartidarismo sempre empolga e gera adesões; e, depois, decepções.
O que está ocorrendo no vizinho país lembra a revolução de 1952, quando índios (quéchuas e aimarás, que formam a maioria da população do país), mineiros e operários se rebelaram contra militares golpistas, desmoralizaram o Exército, que foi dissolvido, e pretenderam constituir um Governo que defendesse os interesses do país e da maioria da população. O resultado foi a apropriação da revolução por demagogos, com a continuação da exploração e da miséria; e das crises institucionais: não surgiu ali um PRI (Partido Revolucionário Institucional), que, durante quase todo o século 20, governou o México para o bem e para o mal.
Sánchez de Lozada, típico exemplar de uma elite cosmopolita, pró-Estados Unidos e pró-globalização de mão única (estudou e morou muitos anos nos EUA), não conseguiu implantar o seu programa teimosamente comprometido com o ultraliberalismo dos anos 90. Cercado em La Paz, a capital, renunciou e viajou para Miami. Por enquanto, o país voltou ao normal. O vice Carlos Mesa, empossado como novo presidente, intelectual, escritor e dono de uma cadeia de TV, sem partido, formou um Governo com ministros que não estão ligados a partidos. Embora pretendesse chefiar um Governo “histórico de transição” e convocar eleições em breve, líderes políticos lhe pediram que permaneça no poder até completar o mandato de seu antecessor, em 2007, pois temem que a antecipação de eleições presidenciais agrave a crise econômica, social e política.
Há um projeto em curso para a erradicação da coca, mas que não oferece alternativas aos índios, cuja cultura inclui seu cultivo e consumo. O líder dos plantadores da erva, o índio Evo Morales (foi candidato a presidente no ano passado), concorda com o líder indígena Filipe Quispe em dar uma trégua de 90 dias a Mesa, mas cobra, depois desse prazo, a construção de “um novo Estado, que acabe com o Governo neoliberal”. Por enquanto, Mesa anunciou três medidas: um plebiscito sobre a exportação de gás, a revisão da lei que regulamenta a exploração e comercialização do produto, e a convocação de uma Assembléia Constituinte. A exportação de gás para os EUA foi o estopim da rebelião popular.
Um dos países mais pobres das Américas, a Bolívia acumula, sem solução, problemas como enorme fragilidade das instituições políticas, uma população indígena majoritária mas analfabeta, marginalizada e miserável, baixíssimo nível de industrialização; além de haver perdido, numa guerra do século 19 contra o Chile e o Peru, um parte de seu território que lhe dava um porto no Pacífico. Como se não bastassem seus males crônicos multisseculares, causas de crises sem fim, acrescentou-se ultimamente a adesão a dogmas econômicos pregados pelos países desenvolvidos e impostos pelo FMI; dogmas que só trouxeram crises a países bem mais desenvolvidos que a Bolívia, como os vizinhos Brasil e Argentina.
Esperava-se que a redemocratização da América do Sul ajudasse a resolver tantos problemas, o que não aconteceu. Não é fácil a missão do presidente Carlos Mesa. Saudemos a saída sem o tradicional golpe. Boa sorte e bons apoios para ele.
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