Durante 26 anos ele freqüentou as arquibancadas. "Sempre em bando, que nunca fui mané." Unindo violência com esperteza, não teve dificuldades em subir os degraus da hierarquia de uma torcida uniformizada em São Paulo. "É só pegar fama de encrenqueiro que o moral vai lá em cima." Não chegou a presidente. "Bota aí que tive influência e estamos conversados."
Acompanhou o crescimento da violência nas torcidas. A troca dos murros pela bomba caseira. Falou da respeitabilidade que as torcidas adquiriram com o carnaval. E, principalmente, da impunidade. Foi preso 12 vezes por brigas em estádios, mas sua ficha criminal está limpinha. "Fora dia de jogo, os gambés (PMs) só me viram em churrascos que eles davam. Pela paz, imagina... Parecia sacanagem. A gente sabia que tudo não ia passar de discursinho para a televisão. A briga iria continuar e sem ninguém preso."
Esse ex-dirigente de torcida uniformizada só aceitou falar se não fosse revelada sua identidade. Depois de apavorar tanta gente, chegou a hora de ele ter medo. Percebendo que dois de seus filhos estão querendo seguir os seus passos, já decidiu sair de São Paulo com eles. E explica. "Vou falar a real: hoje em dia ninguém mais controla os torcedores uniformizados. Os presidentes até têm boa vontade, falam, pedem. Mas a coisa fugiu do controle deles. Como alguém vai controlar dois mil, três mil garotos loucos por confusão e violência saindo de todos os pontos de São Paulo? E principalmente sabendo que nada vai acontecer se forem presos? Quem?!
"Sou ruim de datas e nomes. Não vou dar porque pode sobrar pra mim. Sei o que vivi. Resolvi começar a freqüentar estádios quando tinha 17 anos. Já tinha paixão pelo meu time, mas me encantei com os torcedores uniformizados.
Eles tinham grito de guerra e, o mais importante para mim: lugares reservados nas arquibancadas. Podiam chegar tarde que bastava a camiseta da torcida que o lugar era deles. Na verdade, logo no meu primeiro jogo, eu e uma 'renca' de caras tivemos de sair para dar lugar a eles. Os policiais olhavam e não faziam nada. No dia seguinte eu estava na porta desta torcida querendo me filiar.
Valia tudo sob o manto da torcida
"Entrei e me senti o máximo. Era como se uma força invisível me protegesse. Pensava que havia entrado em um exército. No dia de ir pro jogo a gente ia para a sede da torcida e começava a batucar. E logo cedo, às 11 horas, começava a beber cerveja. Rolavam umas garrafas enormes de batida e caipirinha. A gente já ficava a mil. Depois entrava nos ônibus e fazia a maior zoeira. Adorava xingar e cuspir na burguesada. Não seria louco de fazer isso em ônibus normal indo pro trabalho. Na torcida era liberado.
Todos riam muito quando alguém acertava uma cusparada em um 'boyzinho'.
"Nas viagens também rolava farra generalizada. A gente viajava sem grana e resolvia a fome nas paradas nas lanchonetes no caminho. Catava o que queria e ninguém pagava nada. Os cartolas mandavam ingressos e muitas vezes o aluguel do ônibus.
"Não existe uma torcida pior ou melhor do que a outra. Lá pelo meio dos anos 70 já havia briga feia. Mas era uma coisa respeitosa. Os presidentes das uniformizadas sabiam quem era quem e faziam acordos. Era proibido arma de fogo e faca. Todos tinham, mas não usavam. Ficavam escondidos nos pisos falsos dos ônibus. A polícia nem revistava direito na época. Era uma coisa de confiança. Os tempos eram outros. Comparando com o sangue que corre solto hoje em dia, nós éramos ingênuos. Parecíamos meninos briguentos de colégio.
"O maior tesão era arrancar as faixas de outras torcidas. A gente esquecia do jogo e ficava bolando planos para tirar e queimar as faixas. Essa era a grande conquista. E quer saber quem eram os mais folgados, os que se davam bem nessa época? Os loucos da Leões da Fabulosa (da Portuguesa). Uns cem portugueses malucos iam ao estádio sabendo que iam apanhar no campo e arquibancada. As torcidas adversárias, mais numerosas até batiam neles. Mas pouco, com respeito. Todos admiravam os culhões que tinham. Os portugueses apanhavam e iam rindo para casa com o pedacinho da faixa que conseguiram rasgar.
"A coisa degringolou com o crescimento das torcidas. Tinha a Camisa 12, mas a Gaviões da Fiel foi um fenômeno. Com o jejum de títulos do Corinthians, eles dobraram o número de torcedores. As 'tretas' começaram a ficar pesadas entre os Gaviões e a Torcida Uniformizada do Palmeiras. Os gaviões eram em maior número e chegou uma pivetada mais violenta. Cansaram de espancar palmeirenses. As tocaias começaram a ser feitas aos ônibus. Eles descobriam o caminho que iam fazer para o estádio em jogos pequenos, não em clássicos, quando a polícia acompanhava. Era só pegar tijolo e mirar todos em direção do motorista. Os vidros quebravam e ele tinha de parar. Aí a proporção era de nove, dez corintianos para cada palmeirense.
Mancha e Gaviões contra a Independente
"Só que os pivetes do Palmeiras não se conformavam com a postura pacífica da Torcida Uniformizada e resolveram fundar a Mancha Verde. Passou a ser fogo contra fogo. Tocaia contra tocaia. Mas continuava na mão, era porrada para todo o lado. Os Gaviões perceberam que a coisa estava dura, equilibrada. Aí, sabe o que aconteceu? O São Paulo começou a ganhar tudo em campo. Tanto palmeirenses como corintianos passaram a perseguir os são-paulinos. A uniformizada do São Paulo era muito tranqüila e aquilo revoltou novos pivetes. Aí resolveram criar a tal da Independente. P.q.p...
"Louco e sangue ruim sempre existiu em todas as torcidas. Mas os primeiros boatos de bomba caseira começaram com a Independente. Não dá para botar a mão no fogo, mas que foi com eles que começaram as conversas. Ninguém botava fé, até que houve uma briga federal na saída de um jogo do Morumbi. Uns palmeirenses da Mancha com uns infiltrados conhecidos e amigos da Gaviões foram dar um pau na torcida do São Paulo. Foram recebidos a bombas caseiras e tiros de revólveres. O arsenal era guardado no Morumbi, depois a polícia descobriu e acabou com a festa. Muita gente se feriu e não saiu no jornal porque ninguém morreu. Mas a coisa descambou. Todos passaram a se armar de verdade. Acabou a ingenuidade.
"E tem mais: no dia seguinte que uma briga é mostrada pela tevê, tem uns cem novos meninos querendo entrar para a torcida. Virou propaganda e ninguém se toca.
" Os presidentes das torcidas descobriram uma maneira de ganhar mais respeito da sociedade com os desfiles de carnaval. Dá moral ter uma escola de samba. O apoio dos torcedores é automático. Todos que se organizam para ir aos estádios novamente se juntam em uma nova causa. São as cores da torcida na avenida, passando pela televisão. Uma hora de propaganda e fama à disposição. Está certo que todos gostam de samba, mas aquilo é um prato cheio para a divulgação das uniformizadas. Só que os 'homens' do governo já se tocaram.
"Com o sucesso da Gaviões, vão atrapalhar o quanto puderem a Mancha e qualquer outra torcida de se tornar uma escola de samba tão forte. Eles já estavam procurando uma desculpa e esses caras da Independente vão no sambódromo e saem matando. Foi o que eles queriam. Todo mundo já se tocou que a imunidade do carnaval está na alça de mira. A Gaviões e a Mancha não vão ficar juntas na elite de jeito nenhum. O medo do confronto é evidente. E olha se não arrumarem um jeito de proibir as duas.
"Agora vou falar do lado mais delicado e sujeira para mim: a polícia. Os caras tentam travar os torcedores uniformizados, mas não podem. Eu fui preso 12 vezes por brigas em estádio. A única estratégia que a gente sempre combinou foi não reagir e bater em polícia. Os caras nos levam para o 'xadrez' durante o jogo e nos soltam. Sempre na moral porque não levantamos a mão contra eles.
"Eles ficam 'putos' porque não podem fazer nada. Eu mesmo, se ficasse em cana na primeira vez, iria pensar 20 vezes antes de aprontar novamente. Mas a gente vai preso durante o jogo rindo por dentro. As reuniões com o Capez (procurador Fernando Capez) e com o comando da Polícia Militar são balela.
Todos sabem que não existe lei para segurar o torcedor. Todos têm boa vontade. Principalmente os presidentes das torcidas que já perceberam que, mais dia menos dia, eles serão responsabilizados pelas 'pá de morte' que estão pintando por aí. Só que acontece o seguinte: eles perderam o controle dos torcedores. Quando a PM ainda levava para os estádios, era mais na paz porque todos saíam das sedes. Só que quando o Capez disse que acabou as uniformizadas, todos passaram a se reunir nos seus bairros e depois se encontram no estádio. Eles vão tocando o 'puteiro' na ida e na volta, bem longe do campo. Só não vê quem não quer.
"E tem coisa mais babaca que acabar com o nome das torcidas? Os caras trocam de nome e continua a mesma coisa. Todo mundo é idiota? Isso é coisa de burro? O que pega é a impunidade. Eu já me diverti: bati e apanhei muito. Só que não matei ninguém. Meus filhos não vão participar de torcida nenhuma e vão comigo para o Norte. Não quero aparecer na televisão pedindo Justiça vendo os guris sendo enterrados, não."
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