Brigitte Bardot morre aos 91 anos e reacende debate sobre legado, liberdade e contradições
Da Redação .
Foto(s): Divulgação / Wikimedia Commons
Símbolo máximo do erotismo no cinema europeu dos anos 1950 e 1960 e referência mundial da cultura pop, Brigitte Bardot morreu aos 91 anos, em sua casa no sul da França, deixando um rastro de admiração, polêmicas e um debate intenso sobre o impacto de sua filmografia.
A atriz, nascida em 28 de setembro de 1934 em Paris, morreu neste domingo, 28 de dezembro de 2025, em Saint-Tropez, segundo anunciou sua fundação dedicada à proteção dos animais, sem divulgação da causa da morte e sem, por enquanto, definição sobre funeral ou cerimônias públicas.
Último ato de um ícone francês
Brigitte Bardot consolidou-se como um dos rostos centrais do chamado “novo cinema” francês, impulsionada por uma imagem associada à liberdade sexual, ao hedonismo e a uma nova forma de feminilidade na Europa do pós-guerra. A morte da atriz motivou manifestações imediatas de autoridades francesas, críticos de cinema, colegas de geração e artistas contemporâneos, que enxergam na trajetória de Bardot um divisor de águas entre o cinema de costumes rígidos do pós-guerra e uma cultura visual marcada pela exposição do corpo e pela autonomia das personagens femininas.
Segundo comunicado da Fundação Brigitte Bardot, a atriz morreu em sua residência no sul da França, onde vivia reclusa e dedicada integralmente à militância em defesa dos animais, causa à qual se voltou de forma quase exclusiva a partir de sua aposentadoria do cinema em 1973.
Reações na França e no mundo
O presidente francês Emmanuel Macron descreveu Bardot como uma figura que encarnou “uma vida de liberdade”, destacando seus filmes, sua voz, sua presença na cultura popular e sua transformação em símbolo nacional, comparando seu rosto à figura de Marianne. Na indústria do cinema, cineastas e atores franceses ressaltaram a importância de Bardot para a internacionalização do cinema de seu país, lembrando que ela foi, durante pelo menos uma década, o rosto francês mais conhecido no mundo.
Críticos de cinema na Europa e nos Estados Unidos enfatizam que a morte de Bardot encerra de forma definitiva uma era em que o star system ainda dependia de poucos rostos globais, e em que a aura de uma estrela podia reposicionar um país inteiro no mapa cultural. Ao mesmo tempo, autores e militantes de direitos civis lembram que a atriz também acumulou declarações e posicionamentos políticos controversos nas últimas décadas, o que torna qualquer balanço de seu legado necessariamente atravessado por tensões.
De sex symbol a ativista
Brigitte Bardot estreou no cinema em 1952, em produções ainda modestas e em papéis secundários, enquanto trabalhava também como modelo e se projetava na imprensa francesa. A virada ocorreu a partir de meados dos anos 1950, com filmes que exploravam seu magnetismo em papéis de jovens mulheres que confrontavam códigos morais consolidados, antecipando discussões sobre sexualidade e autonomia feminina.
Nos anos 1960, já consagrada, Bardot passou a alternar comédias, melodramas e obras de autores mais experimentais, consolidando uma filmografia que é vista, por críticos, tanto como retrato de época quanto como laboratório de novas formas de dirigir, iluminar e filmar o corpo no cinema comercial europeu. Em 1973, aos 39 anos, ela decidiu se retirar do cinema e do showbusiness, focando sua atuação em causas animalistas, criando a Fundação Brigitte Bardot, que passou a operar globalmente em campanhas contra maus-tratos, testes em animais e certas práticas tradicionais de abate.
Filmografia essencial e datas
Embora Bardot tenha atuado em dezenas de filmes entre 1952 e 1973, alguns títulos se tornaram centrais na leitura de seu impacto estético e cultural.
“Le Trou normand” (Crazy for Love, 1952) marcou uma das primeiras aparições de Bardot em longa-metragem, ainda em um contexto de comédia ligeira e com a atriz em fase inicial de carreira.
“Manina, la fille sans voile” (Manina, the Girl in the Bikini, 1952) trouxe Bardot em papel que já investia na associação entre juventude, praia e exposição do corpo, antecipando imagens que se tornariam centrais em sua persona pública.
“En effeuillant la marguerite” (Plucking the Daisy, 1956) reforçou a ligação da atriz com personagens que oscilavam entre ingenuidade e provocação, em um registro de comédia de costumes.
“Et Dieu… créa la femme” (And God Created Woman, 1956), dirigido por Roger Vadim, é considerado o filme que transformou Bardot em ícone internacional, com a personagem Juliette Hardy sintetizando uma mulher que rompe o controle moral de uma pequena cidade e redefine a forma como o desejo feminino é mostrado na tela.
“La Vérité” (A Verdade, 1960), de Henri-Georges Clouzot, levou Bardot a um registro dramático intenso, com a personagem Dominique Marceau envolvida em um julgamento por assassinato, e rendeu à atriz o prêmio David di Donatello de melhor atriz estrangeira.
“Vie privée” (A Very Private Affair, 1962) aproximou ficção e realidade ao narrar a história de uma estrela perseguida pela fama, ecoando a própria experiência de Bardot diante da imprensa e da cultura de celebridades.
“Le Mépris” (Contempt, 1963), de Jean-Luc Godard, tornou-se um dos títulos mais estudados de sua filmografia, com Bardot no papel de Camille Javal, em um filme que discute crise conjugal, indústria cinematográfica e o próprio ato de filmar.
“Viva Maria!” (1965), de Louis Malle, apresentou Bardot em dupla com Jeanne Moreau em uma aventura político-cômica, e lhe rendeu indicação ao prêmio BAFTA de melhor atriz estrangeira.
“Shalako” (1968), produção falada em inglês, colocou Bardot ao lado de Sean Connery em um western europeu, evidenciando sua capacidade de transitar por coproduções e mercados distintos.
“Don Juan 1973 ou Si Don Juan était une femme…” (Don Juan, or If Don Juan Were a Woman, 1973) reuniu novamente Bardot e o diretor Roger Vadim, agora com a atriz interpretando uma versão feminina de Don Juan, em um filme frequentemente visto como síntese extrema de seu mito de sedução.
Comparação de fases e personagens
Ao longo de duas décadas, a filmografia de Bardot pode ser dividida, grosso modo, em três fases: início em papéis secundários, consolidação como protagonista em comédias e dramas de costumes, e período de colaboração com grandes autores, seguido de experimentos de gênero e coproduções internacionais. Nos anos 1950, sua presença em filmes como “Crazy for Love” e “Manina” mostrava uma jovem atriz ainda inserida em narrativas tradicionais, mas já enquadrada pela câmera como centro do desejo, muitas vezes em contraste com personagens masculinos mais rígidos.
Com “And God Created Woman”, a personagem Juliette Hardy rompe o molde da jovem coadjuvante e torna-se eixo de conflito em uma sociedade provinciana, o que especialistas descrevem como um ponto de virada na representação feminina na cinematografia francesa comercial. Na década de 1960, Bardot passa a ocupar papéis que combinam erotismo, fragilidade e consciência de si, como Dominique em “La Vérité” e Camille em “Le Mépris”, em filmes que são, ao mesmo tempo, melodramas e metarretratos do próprio cinema.
Críticos contemporâneos apontam que, em “Le Mépris”, a maneira como Godard filma Bardot revela uma tensão permanente entre o olhar que a reduz a objeto e os momentos em que sua personagem afirma autonomia, o que faz do filme uma chave para compreender o lugar da atriz na cultura do século XX. Em “Viva Maria!” e “Shalako”, por outro lado, Bardot aparece integrada a fórmulas de entretenimento mais convencionais, o que ilustra a tentativa de conciliar o prestígio autoral com a lógica de coproduções internacionais e a expansão de mercado.
Nos trabalhos finais, como “Don Juan 1973”, a figura da mulher que domina e destrói os homens que a cercam é levada ao limite, em uma leitura que parte da crítica vê como autocrítica do mito Bardot, enquanto outra parte enxerga apenas a repetição de uma fórmula já exaurida. Após 1973, a ausência de novos filmes congela a imagem da atriz em um recorte muito específico de tempo, o que contribui para que sua figura continue associada, décadas depois, à juventude e a um certo ideal de sensualidade ligada aos anos 1960.
Opiniões de críticos, cineastas e celebridades
Críticos de publicações especializadas em cinema europeu ressaltam que a importância de Bardot vai além de seu papel como símbolo sexual, destacando sua colaboração com diretores como Henri-Georges Clouzot, Jean-Luc Godard e Louis Malle como elementos centrais para a consolidação de um cinema francês mais autoral e, ao mesmo tempo, popular. Para esses analistas, “La Vérité” e “Le Mépris” são as obras que melhor revelam seu alcance dramático, afastando a leitura de que sua carreira se resumiria à imagem e ao escândalo.
Cineastas de gerações posteriores, que cresceram sob o impacto da nouvelle vague e do cinema de autor europeu, já se manifestam em redes e veículos especializados indicando Bardot como referência visual e como figura que abriu caminho para personagens femininas mais complexas. Em Hollywood, atores e atrizes que a citavam como inspiração sublinham, em depoimentos recentes, que a morte de Bardot remete a uma era em que a circulação internacional de filmes era mais limitada, o que conferia a certas estrelas uma aura hoje considerada irrepetível.
Artistas e celebridades ligadas à causa animal destacam o papel de Bardot na transformação da pauta de proteção animal em tema global, lembrando que sua fundação se tornou uma das vozes mais visíveis em campanhas contra maus-tratos, inclusive em contextos de tradições culturais arraigadas. Ao mesmo tempo, organizações que atuam em direitos humanos e antirracismo ressaltam que a trajetória da atriz inclui declarações controversas sobre imigração e religião, o que leva a uma leitura crítica que não separa o mito da estrela da responsabilidade de suas falas públicas.
Legado em disputa
Na França, instituições culturais e cinematecas já discutem a atualização de mostras e retrospectivas dedicadas à obra de Bardot, inclusive com reavaliações que cruzam recorte de gênero, representação de corpos e contexto político. A expectativa é que uma nova onda de revisões críticas aprofunde o exame de como seus filmes ajudaram a redefinir a mulher jovem como protagonista, mas também reforçaram padrões específicos de corpo, beleza e branquitude no cinema europeu.
Para o público, a morte de Bardot se soma à perda de outros nomes do pós-guerra e consolida a sensação de encerramento de uma geração inteira de estrelas que marcaram a transição entre o cinema clássico e o moderno. Em paralelo, a permanência de seus filmes em circuitos de repertório e plataformas de exibição sugere que o debate sobre sua obra e sua figura pública continuará vivo, com novas camadas sendo acrescentadas por críticas feministas, estudos de gênero, pesquisas sobre cultura de celebridades e análise de movimentos de defesa dos animais.
(*) Com informações das fontes: BBC, Reuters, CNN, Deutsche Welle, Encyclopaedia Britannica, Associated Press, The New York Times, filmografias especializadas e registros de cinematecas digitais.